Os ciclos de aumentos tarifários só foram rompidos quando os trabalhadores (em especial a camada mais jovem) foram às ruas, pararam as cidades e se colocaram de forma intransigente contra os governantes eleitos. Por Daniel Caribé
Publicado no Passa Palavra
Tragédia anunciada
A contratação, em 2014, dos consórcios de empresas que operam desde então o transporte coletivo soteropolitano foi uma tragédia anunciada. Desde o processo licitatório, chegando no monitoramento do contrato e na regulação do serviço, tudo foi feito sem o mínimo de critério dentro daquilo que a gente um dia chamou de “interesse público”.
Os consórcios – três no total, um para cada área, com seus ônibus azuis, amarelos ou verdes – na verdade são formados pelas velhas empresas de sempre, antes organizadas no SETPS – Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Salvador, hoje organizadas na Integra. As mesmas empresas que operaram por décadas o serviço, sempre com a mesma liberdade para aumentar as tarifas e oferecer um serviço de péssima qualidade em troca, conforme mostra o artigo “Quando as contas não batem”.
A licitação atropelou tudo aquilo que a gente entende por planejamento urbano, e o contrato dela derivado foi assinado muito antes da elaboração do Plano Diretor (2016) e do Plano de Mobilidade (2018). Os estudos que deveriam embasá-lo, se é que existiram, não levaram em consideração a necessária integração com o metrô ao se calcular os custos da operação, não apresentaram um plano de transição modal (dos carros para o transporte coletivo), nem uma política de recuperação da demanda perdida devido à falta de capacidade de pagamento da parcela mais pauperizada da população (que sofre com restrições severas de mobilidade).
O contrato também não considerou os graves problemas de microacessibilidade, os de acessibilidade financeira, de segurança pública e muito menos levou em consideração que Salvador é um centro de uma metrópole. Por fim, não nos garantiu nenhum mecanismo de controle popular e transparência. Nem mesmo o Plano de Mobilidade aprovado anos depois pretendeu corrigir tais distorções. Enfim, foi um contrato baseado no cenário ideal para as empresas, pois não levou em consideração tudo isso que a cada dia tira receitas e usuários do sistema de transporte público.
Além do mais, foi um processo extremamente autoritário, conforme denunciava o coletivo Tarifa Zero Salvador desde 2013, e eu mesmo num artigo de 2014 chamado “25 anos de subordinação” (quem quiser saber o que foi prometido em 2014 e comparar com o que não foi entregue até 2019, recomendo a leitura). O que interessa destacar aqui é que não houve espaço para questionamentos, participação popular, para que fosse garantido que a contratação das empresas concessionárias tivesse por preocupação qualquer tipo de desenvolvimento (social, econômico ou ambiental).
O resultado é um contrato sem qualquer tipo de fundamento, que vincula a cidade de Salvador por mais de duas décadas às empresas concessionárias que, naturalmente, não podem cumprir um contrato desse tipo e que têm por única estratégia chantagear a Prefeitura até obter, a cada ano, novos aumentos tarifários.
Uma luta intransigente
O que foi falado até aqui é enfadonho, tecnicista e dominado por gestores, sejam eles de direita ou de esquerda. Estejam eles do lado dos trabalhadores ou dos empresários. O fato é que esse embate “por cima” raramente traz bons resultados e, no caso dos aumentos tarifários, nunca foi nesse plano que eles foram barrados.
Os ciclos de aumentos tarifários só foram rompidos quando os trabalhadores (em especial a camada mais jovem) foram às ruas, pararam as cidades e se colocaram de forma intransigente contra os governantes eleitos. Não há outra solução a curto prazo.
E é necessário ser intransigente contra o aumento porque os governos tendem a negociar tudo, menos o lucro das empresas que os sustentam. Foi essa a lição da derrota de 2003 na Revolta do Buzu, foi essa a lição das vitórias das lutas de 2013.
O problema é que de 2003 para cá muita coisa mudou. Em todo o Brasil há mudanças demográficas significativas, entre elas a que altera a forma da pirâmide etária. Hoje temos relativamente menos jovens do que tínhamos anos atrás, por exemplo. E, em Salvador, isso se reflete no fechamento das escolas secundaristas de responsabilidade do governo do estado. Em especial, as escolas do Centro da cidade são as que mais sofrem com essa ameaça, exatamente aquelas que foram o epicentro das mobilizações da Revolta do Buzu, apesar de ela ter se espalhado por toda a cidade.
Mas esse esvaziamento das escolas do Centro não se deve unicamente às mudanças demográficas. Há mesmo uma política – apoiada em grande medida pela esquerda – de restrição dos jovens às suas “comunidades” (como passaram a ser chamados os bairros populares). As escolas se aproximam do local de moradia, é verdade; por sua vez, acabam por afastar os estudantes do restante da cidade.
Restritos aos seus bairros – devido a esta política de levar as escolas às comunidades, mas também devido à perversidade da política de segurança pública – o transporte público passa a ser um custo a menos para esses jovens e, por isso, revoltam-se menos quando há novos aumentos.
Além disso, o isolamento territorial da juventude da camada mais pobre dos trabalhadores acaba por fragmentar ainda mais antigas sociabilidades, pois potencializa as rixas entre facções. O jovem do bairro vizinho passa a ser um estranho, pois não há nenhum espaço de encontro com ele, fragilizando as práticas de solidariedade. O resultado é que hoje, em Salvador, os jovens de muitos bairros populares receiam pelas próprias vidas ao atravessarem as fronteiras riscadas pela violência urbana. De estranho para inimigo, é essa a conversão provocada pelo isolamento territorial.
Por isso que, e apesar de todas as minhas críticas às entidades estudantis, não as culpo pela incapacidade de provocar a revolta. Elas têm mesmo que mobilizar os estudantes, afinal. Mas o isolamento delas significa uma derrota iminente. Sem apoios de outras frações dos trabalhadores para além dos jovens isolados em suas comunidades, aqueles muito mais prejudicados pelo aumento do que estes, será difícil reverter o que se passa.
O MPL, quando migrou sua pauta do passe livre estudantil para a Tarifa Zero, tinha entendido que esse salto era fundamental, afinal os aumentos tarifários e a precariedade do serviço afetam a todos.
Por último, a cada três anos (aproximadamente) surge uma nova geração de estudantes que pouco sabe a respeito das lutas anteriores. Normal. Mas aqueles que ela combate são os mesmos há décadas. E eles têm muito pouco tempo para aprender que é necessário “sair do roteiro”.
Um problema nacional
Mas é preciso também romper o ciclo vicioso que caracteriza o financiamento dos transportes públicos no Brasil. Com exceção de São Paulo e Brasília, as demais metrópoles brasileiras financiam o serviço exclusivamente através das tarifas. Nas grandes cidades do mundo os subsídios chegam a 2/3 dos custos do sistema, há impostos exclusivos para o financiamento que recaem sobre as grandes empresas, como no caso da França.
Além desses impostos, outros países obrigam orçamentos municipais e nacionais a subsidiarem o transporte público. Ou seja, há uma compreensão de que o transporte público beneficia a todos, principalmente aqueles que não o utiliza diretamente: as grandes empresas que têm seus trabalhadores entregues nos seus portões cotidianamente, os centros comerciais que veem seus clientes descerem do ônibus ou do metrô praticamente dentro das suas lojas, os usuários dos automóveis que enfrentam menos congestionamentos etc. e por isso devem pagar também. Chegamos ao ponto da Tarifa Zero – ou seja, o subsídio total do transporte público – ter entrado na agenda dos debates em diversos países.
Portanto, precisamos seguir nesse caminho: o de pensar a mobilidade urbana enquanto direito, aliás, garantido constitucionalmente por conta das mobilizações de 2013. E, enquanto direito, assim como o SUS e a Educação, deve ser financiado por todos e não somente pelos seus usuários diretos.
Sem essa virada na compreensão da função dos transportes públicos não será possível superar os conflitos cotidianos em torno dos aumentos tarifários e da qualidade do serviço, pelo menos enquanto vivermos em uma sociedade fundamentada na exploração do outro. E, mais do que isso, estaremos a esperar o dia da falência total deste serviço. Além das perdas de demanda devido ao empobrecimento da população, ou da transição para os veículos particulares, a emergência da “economia do compartilhamento”, um nome mais bonitinho para a precarização total das relações de trabalho, tende a ser o golpe de misericórdia nos transportes públicos caso eles não baixem os seus custos para o usuário direto.
Assim, a cidade de Salvador pode e deve subsidiar uma parte do transporte público desde já, é isso que deve ser garantido na intransigência da luta contra o aumento, pois nada justifica a opção do prefeito por mais um aumento. Entretanto, por não ser um problema exclusivo nosso, é preciso que encontremos também uma solução nacional.
Resgatar a radicalidade do Direito à Cidade
O grande problema é que a ideia de “direito à cidade” se tornou uma grande panaceia nos últimos anos, quando deveria ser uma proposta extremamente radical. A cidade é uma obra coletiva, uma produção de todos aqueles que vivem nela, mas ela é apropriada plenamente por alguns poucos. Muitos vivem cada dia mais restritos às suas comunidades, a exemplo dos jovens supracitados, formando periferias geográficas e sociais.
Então, quando falamos em recuperar a radicalidade do “direito à cidade”, estamos falando em reapropriação da cidade por esses que hoje estão sofrendo com uma política de insulamento, ou que se deslocam pelas cidades somente para ir para os seus postos de trabalho e depois voltar para casa.
A mobilidade urbana entra aí porque é ela que garante os deslocamentos para além daquele raio que conseguimos alcançar utilizando apenas as nossas pernas. Afinal, as cidades romperam a escala humana há muito tempo! Se não há ônibus e metrôs que cheguem à praia, aos parques, aos estádios de futebol, aos hospitais, às universidades e às boas escolas (não essas onde estão sendo depositados os jovens dos bairros populares), não adianta que estes equipamentos sejam públicos e até gratuitos se o trabalhador que mais precisa deles não consegue alcançá-los. E, muitas vezes, até há linhas de ônibus, mesmo precárias, mas falta dinheiro para pagar as passagens. O que significa para uma família com 4 pessoas, e sustentada por um salário mínimo, gastar mais de 30 reais apenas para ver o mar ou levar todos no posto de saúde mais próximo?
Claro, poderíamos construir cidades mais densas, povoar todas essas periferias com serviços públicos, equipamentos de lazer etc. e assim diminuir as necessidades dos deslocamentos. Afinal, a mobilidade urbana está intimamente imbricada com a disputa pelo solo urbano e com os demais direitos sociais. Mas aqui entra a segunda justificativa de um transporte público e acessível (espacial e financeiramente falando): é preciso promover o encontro entre as pessoas. Moradores dos mais diversos bairros precisam se encontrar, precisam compartilhar o pedaço de cidade que cada um produz e precisa aprender a conviver com o diferente.
Esse encontro entre os diferentes “tipos” de trabalhadores é fundamental para girar os conflitos das identidades para as classes, para nos tirar da guerra de todos contra todos no nível de baixo da pirâmide social e nos ajudar a apontar para cima, para aquele 1% que tudo controla e se delicia com a nossa autodestruição, entre eles os empresários das empresas de ônibus.
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