Cabula/Tancredo Neves, Liberdade/São Caetano e Itapuã somam 171 rotas cortadas em 11 anos. Por Caio Valente (@_caiovalente_) e Elaine Sanoli (@sanoliela)
Publicado no Impressão Digital - Faculdade de Comunicação | Universidade Federal da Bahia
Salvador teve 368 linhas de ônibus extintas de 2013 a 2024. Dessas, cerca de 46,5% têm seus pontos de partida nas regiões compreendidas pelas prefeituras-bairro Cabula/Tancredo Neves, Liberdade/São Caetano e Itapuã. São 171 rotas retiradas de circulação dentro do período de 11 anos. As áreas menos afetadas pelos cortes são Cidade Baixa e Barra/Pituba, com 19 e 18 trajetos respectivamente. O levantamento próprio do Impressão Digital (ID) é baseado em dados do Observatório da Mobilidade Salvador (Obmob), coletivo de ativistas e pesquisadores.
O período compreendido pelos dados do Obmob coincide com a implementação de duas grandes obras que modificaram o sistema de transporte na cidade: o metrô, gerido pelo Governo do Estado, e o Bus Rapid Transit (BRT), pela Prefeitura de Salvador. Para o pesquisador e coordenador do Observatório, Lucas Vinicius Araújo, Salvador possui uma tradição da mobilidade de "bairro a bairro", utilizando ônibus para chegar a regiões vizinhas. Com os cortes, rotas que eram feitas com apenas um veículo foram adaptadas para conciliar o transporte por meio do metrô e do BRT. "A prefeitura acredita muito nessa ideia de transporte público orientado a trabalho, de que a gente precisa levar o trabalhador rapidamente para o seu posto, descartando a ideia de que mobilidade urbana e transporte público pode ser para as pessoas poderem visitar outros bairros, para que elas possam interagir com equipamentos urbanos nas vizinhanças dos locais onde elas moram", critica.
A premissa da integração multimodal é fazer com que os usuários acessem um transporte mais rápido e eficiente. No entanto, um levantamento realizado pela plataforma de transporte Moovit apontou, em 2022, Salvador no pódio das capitais brasileiras com maior tempo de espera por transporte público, com total de 23 minutos, dividindo posto com Brasília. "A gente tem um alto tempo de espera, porque, da forma como o transporte público aqui em Salvador é construído, se você não está viajando no horário de pico, o tempo que você vai levar para sair do ponto A e chegar em um ponto B vai demorar muito mais", pondera o coordenador do Obmob.
Para Araújo, as falhas no sistema de transporte público de Salvador o transformam em uma "colcha de retalhos", visto que os modais não se conectam de forma orgânica, embora eles se retroalimentem, já que o sistema de ônibus serve como forma de levar os usuários ao metrô. "Não existe um planejamento urbano que promova a coexistência de diferentes modos de transporte, tudo é feito de forma muito imediata. A intenção é entregar uma obra e não pensar em como essa obra e esse sistema de mobilidade conversam uns com os outros", avalia.
Só restou saudade
Uma das 368 linhas cortadas é a 0411 - DUQUE DE CAXIAS X BARRA, cujo trajeto ligava o bairro da Liberdade à Barra. A retirada da linha impactou de forma significativa na vida de moradores como Jailton Aquino. "Essa linha era muito importante para os moradores aqui da Liberdade que trabalhavam no Campo Grande e lá para o lado da Graça, Vale do Canela, Heitor Dias também", conta o porteiro, que utilizava a linha como forma mais acessível e direta de chegar a outra zona da cidade.
Segundo Jailton, hoje, para fazer o mesmo trajeto, é necessário pegar um ônibus até o Largo do Tanque e esperar um veículo com destino à Barra, que tenha saído de Fazenda Grande, Marechal ou Pirajá. "Tem aquele transtorno todo, se for um dia de feriado tem engarrafamento ali na entrada do Ferry. Se tivesse o 0411 - DUQUE DE CAXIAS X BARRA já vinha direto, saltavam todos direto nos seus pontos", lamenta o trabalhador, que se identifica como “busólogo”, ou entusiasta de ônibus.
"Para mim, enquanto moradora da Liberdade (Lapinha), as mudanças foram péssimas. A mobilidade urbana em Salvador está muito ruim. Eu estou economizando ao máximo para tentar comprar um carro", conta a professora de Educação Física, Tiali Dória. "Se você pega um ônibus para ir para o centro da cidade, saindo da Lapinha, da Liberdade, esse mesmo ônibus já atendeu São Caetano, que já é um bairro populoso, Fazenda Grande, então é superlotado. Se você desce na Estação do Campo da Pólvora e vai para o metrô, lotado. Até chegar na Lapa e conseguir outro para chegar na Barra são muitos traslados, é muito cansativo", avalia.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Mobilidade de Salvador para esclarecer quais linhas a prefeitura confirma ter cortado, quais bairros foram mais afetados, etc., mas não houve retorno até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto para eventuais posicionamentos.
Partindo em retirada
Lucas Vinicius Araújo aponta que Salvador está inserida em um contexto nacional de fuga do transporte por ônibus. Os passageiros estão cada vez mais optando por diferentes modais que ofertem serviços mais baratos ou com maior qualidade, uma tendência iniciada muito antes da pandemia. "Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro têm perdido passageiros, que estão fugindo do ônibus para um automóvel, para o transporte por aplicativo. A segunda [razão para o esvaziamento dos ônibus] é o aumento recorrente da tarifa", observa o coordenador do Obmob.
O contrato da Integra, consórcio formado pelas empresas OTTrans e Plataforma, prevê aumento anual do valor da tarifa, fixado em R$ 5,20 há cerca de um ano. "À medida que você vai aumentando a tarifa, você vai restringindo a quantidade de pessoas que pode acessar o transporte público. As pessoas estão cada vez mais sentindo dificuldade de conseguir pagar pelo transporte coletivo", argumenta o pesquisador, que calcula um gasto de mais de R$ 200,00 para um trabalhador que utilize o sistema de ônibus de Salvador ao menos duas vezes ao dia.
Falta de transparência limita acesso a dados
A pesquisa sobre os cortes de linhas, feita pelo Obmob, não teve auxílio da Prefeitura de Salvador, apoiando-se em sondagens com usuários e reproduções de anúncios da Secretaria de Mobilidade Urbana em veículos de imprensa e páginas de redes sociais. A ausência de informação sobre essa política pública de transportes de Salvador, em si, já configura uma questão passível de disputas.
"Estamos para protocolar uma ação no Ministério Público questionando a Prefeitura em relação ao cumprimento da lei [da transparência] dessas informações justamente por causa disso, porque solicitamos esses dados e eles não entregaram. Isso é grave", pontuou o coordenador do Obmob.
Essa escassez de dados limitou o escopo da pesquisa. Com acesso apenas ao código e denominação das linhas descontinuadas, o Observatório não pôde georreferenciar as informações com trajetos e itinerários. Para tentar uma aproximação com a realidade espacial dos cortes de linhas de ônibus em Salvador, no entanto, a reportagem empreendeu uma divisão das linhas documentadas por ponto de partida. Dessa divisão, destacou-se a região da Prefeitura-Bairro do Cabula, no "miolo" de Salvador, como ponto de origem da maior quantidade de linhas cortadas, com 61 casos.
Para o Obmob, no entanto, o critério quantitativo não é suficiente para avaliar o impacto da redução das rotas no cotidiano da cidade. A região do Subúrbio, que aparece no mapeamento com 35 linhas descontinuadas, por exemplo, esteve na avaliação dos pesquisadores como o maior afetado pela extinção de linhas junto ao miolo que compreende o Cabula.
"Concluímos no nosso estudo que as regiões mais afetadas foram o Subúrbio e o miolo de Salvador, justamente porque os ônibus dessas regiões faziam as viagens mais longas, que levavam, por exemplo, para a Lapa, Pituba e para o centro da cidade. Essas linhas foram reduzidas para que as pessoas fossem levadas para a estação Águas Claras, Pirajá, Mussurunga, as forçando a utilizar o metrô", explica.
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Caio Valente é estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/UFBA). Chega a esperar 30-40min para qualquer ônibus Brotas passar no ponto da estação de metrô do Matatu no caminho de casa.
Elaine Sanoli é estudante de jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (FACOM/UFBA). Depois de quase dois anos sem transporte público em Camaçari, mobilidade é tema que a inquieta em qualquer contexto.