Antiga praia frequentada por crianças dará lugar a complexo de viadutos em Salvador. Por Mário Pinho*
Na geografia, enseadas são pequenas reentrâncias de mar, onde as águas costumam chegar com mais calma ao continente. Nelas geralmente se abrigam as melhores praias para banho, de ondas tranquilas e profundidade reduzida. Salvador é uma cidade que possui diversas enseadas ao longo dos seus mais de 50 km de borda marítima. A começar pela Baía de Todos os Santos, que nada mais é que uma enseada de grandes proporções – e bota grande nisso: é a maior e mais profunda do Atlântico Sul.
Em uma destas formações geográficas existia, até poucos séculos atrás, uma aconchegante praia batizada de Jequitaia, muito frequentada pelas crianças dos então recentes bairros do Barbalho e do Santo Antônio. Era uma época onde a capital baiana também era conhecida por capital do Brasil e possuía em operação o mais importante porto deste lado do ocidente. Foi graças a este status que a pequena enseada começou a ter seus dias contados. Ela, que era vizinha ao porto soteropolitano, foi sucessivamente aterrada em nome do dito 'desenvolvimento'. O local ganhou, posteriormente, o carinhoso nome de Água de Meninos, popularizado por conta de uma feira livre de mesmo nome, atualmente rebatizada para Feira de São Joaquim.
Hoje a região abriga, na borda do mar, o Terminal de Contêiner do Porto de Salvador, o Terminal São Joaquim do Ferry-Boat e a conhecida feira homônima. É cortada paralelamente pelas avenidas Engenheiro Oscar Pontes e Jequitaia. E entre elas estão instaladas, quase que majoritariamente, revendas de veículos novos e usados e oficinas mecânicas. Entre os resquícios de história antecedente aos aterros, destacam-se o Forte de Santo Alberto (conhecido por Forte da Lagartixa) e a Fonte da Munganga.
Um ponto curioso desse paralelo histórico é a localização do Mercado Municipal de Água de Meninos, conhecido popularmente como Mercado do Peixe por motivos que parecem óbvios. O mercado fica na margem direita da Avenida Jequitaia, à beira de uma das colinas mais altas da cidade. Se você parar em um de seus portões de acesso e fechar os olhos, é possível se enxergar exatamente no ponto onde chegavam tranquilas as águas salgadas da antiga praia da Jequitaia, junto com os muitos barcos de pescadores. Mas ao voltar para a realidade, o que verá é uma grande parede de concreto que sustenta uma alça de acesso a um dos túneis da Via-Expressa Baía de Todos os Santos, uma das principais avenidas de Salvador.
Ao todo são três túneis que cruzam por baixo o bairro da Soledade e conectam o complexo viário à Cidade Baixa. Dois deles se conectam a duas alças, uma de acesso e uma de saída, ambas na Av. Jequitaia, e o terceiro atravessa por meio de um viaduto as avenidas Jequitaia e Oscar Pontes, dando acesso exclusivo ao porto.
Mas, de acordo com os planos do Governo do Estado da Bahia, a concentração de concreto na região da antiga enseada de Água de Meninos deve aumentar. Estão previstos para a região dois grandes projetos de mobilidade que apostarão em estruturas elevadas: um monotrilho, ligando a Região Metropolitana e o Subúrbio Ferroviário ao Centro da capital, e uma ponte rodoviária cruzando a Baía de Todos os Santos e conectando Salvador à Ilha de Itaparica. Duas obras duramente criticadas por estudiosos e especialistas.
Monotrilho
A principal crítica à construção do monotrilho - chamado enganosamente pelo Governo do Estado da Bahia de VLT - vem do fato deste modal substituir uma linha férrea existente e em operação desde 1860. O governo estadual, que administra o sistema ferroviário da capital desde 2013, justifica que a característica elevada do monotrilho minimiza o impacto no trânsito, o que se apresenta com um contrassenso, uma vez que a razão de ser do transporte coletivo é, justamente, substituir o transporte individual, ou seja, tirar os carros das ruas. Como agravante, o projeto exige a desapropriação de diversas moradias em bairros de sensível padrão social. Não é cabível que o teto das pessoas pobres seja menos importante que uma via livre para carros.
Outra forte crítica ao modal é a destruição da linha férrea. Quando na licitação do sistema, o Governo do Estado apresentou um projeto de VLT - este sim, verdadeiramente, no nível do solo - aproveitando a faixa de domínio da ferrovia. Mas por meios nebulosos o VLT se transformou em um monotrilho a ser implantado por uma empresa chinesa que detém uma tecnologia exclusiva para este transporte. Ou seja, um monopólio anunciado.
Quem acompanha um pouco do universo da mobilidade urbana conhece as duas linhas de monotrilho da cidade de São Paulo. E provavelmente conhece por conta das notícias negativas em torno de sua construção e operação. Trata-se de um modal pouco explorado no Brasil e que apresenta diversas dificuldades de implantação e utilização, conforme exemplifica o modelo paulistano.
A linha do monotrilho de Salvador será implantada entre as duas avenidas da região de Água de Meninos. O projeto prevê, sobre a Feira de São Joaquim, uma estação de transferência entre a linha principal, que liga o bairro de Ilha de S. João, no município de Simões Filho, ao bairro do Comércio, no Centro de Salvador; e uma segunda linha, que fará integração ao terminal integrado do Acesso Norte, localizado no centro geográfico da cidade, utilizando a margem da Via-Expressa Baía de Todos os Santos.
Ou seja, só o monotrilho doará mais quatro estruturas elevadas por uma sequência de pilares de concreto ao local onde no passado existia uma aprazível enseada cuja praia era muito frequentada por crianças.
Ponte
O projeto de ligação entre Salvador e a ilha de Itaparica também prevê contribuir no mar de concreto que se tornará a região de Água de Meninos. A ponte sobre a Baía de Todos os Santos é pensada para ter três faixas de tráfego em cada sentido, exclusivamente para carros. Na capital ela cruza o terminal de Ferry-Boat, a Feira de São Joaquim e as quatro linhas do famigerado monotrilho, conectando-se, também, à Via-Expressa já citada neste texto, que, por acaso, foi construída com objetivo de segregar o transporte de cargas do Porto de Salvador ao trânsito da cidade.
Ou seja, serão mais dois viadutos e quatro alças de acesso na região de Água de Meninos. Perdeu as contas? Eu também. A ponte fará uma conexão rodoviária entre Salvador, a ilha de Itaparica e o Baixo Sul da Bahia, região rica em turismo natural e fruticultura. Sem dúvidas irá impulsionar o fluxo de veículos que circula na cidade, prejudicando ainda mais um trânsito que já é complicado.
Há projetos alternativos, inclusive de arquitetos e urbanistas baianos, que propõem de rodovias margeando a Baía de Todos os Santos a travessias rodoferroviárias partindo de uma região mais distante do centro da capital, onde são minimizados tantos os impactos no trânsito quanto a limitação das embarcações que navegam pela Baía. Mas a vencedora da licitação - que por acaso é também uma empresa chinesa - optou pelo trajeto descrito.
Outrora praia tranquila, Jequitaia caiu por terra, para baixo do asfalto das avenidas, dos contêineres do porto e, em um futuro próximo, também estará por baixo de viadutos, alças e pilares de cimento. Onde havia meninos, agora passam carros. E onde havia praia, em breve haverá mar de concreto.
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