Se o voto é obrigatório, é dever do Estado prover transporte aos eleitores. Por André Veloso, Annie Oviedo, Daniel Caribé, Roberto Andrés e Cléo Manhas*
Publicado na Folha de São Paulo
O Brasil viverá um fato inédito nas eleições deste domingo (30): quase metade da população terá acesso a ônibus gratuitos. A política será implementada em ao menos 218 cidades, sendo 26 capitais — contagem feita até o momento em que este artigo foi concluído, já que a atualização é constante. Cerca de 78,1 milhões de pessoas vivem nos municípios que ofertarão a política.
O livre acesso à locomoção nas eleições parece óbvio. A Constituição estabelece o voto como direito e dever da população. Se o voto é obrigatório, e alguns necessitam do transporte para exercê-lo, é dever do Estado prover o transporte. Se as eleições pressupõem a participação equitativa de todos os cidadãos, aqueles com menor renda não podem ser impedidos de votar por falta de recursos.
Apesar disso, a imensa maioria da população nunca teve acesso a transporte gratuito no Brasil. As exceções eram cidades como Manaus e Porto Alegre, que ofereciam a gratuidade em datas festivas e dia de eleições. No ano passado, a Câmara Municipal de Porto Alegre aprovou uma nova lei, proposta pela prefeitura, que revogou o passe livre eleitoral. Foi o estopim involuntário para a onda de tarifa zero que varreu o país.
A polêmica de Porto Alegre instigou algumas cidades a implementarem a gratuidade. A adesão foi crescendo e chegou a 64 cidades no primeiro turno, sendo 14 capitais. No segundo turno, mais de 70 organizações lançaram a campanha Passe Livre pela Democracia, que pediu gratuidade no transporte nas 27 capitais. A mobilização social foi significativa: mais de 50 mil pessoas se engajaram na pressão aos prefeitos.
O resultado é a adoção tardia de uma política essencial. Agora, ela precisa ser garantida em sua plenitude. A campanha Passe Livre pela Democracia reivindica das prefeituras a oferta de transporte no dia 30 de outubro com quadros e horários de dias úteis para que a população possa utilizar o serviço com conforto e velocidade. Convidamos a população a ajudar na fiscalização a oferta.
O direito ao transporte é meio para a realização de outros direitos. Exercer o direito ao transporte significa permitir que as pessoas realizem também o direito à saúde, à educação, ao lazer —e ao voto. No Brasil, o transporte público tem sido relegado à atividade privada, exercida com pouca regulação e raros casos de subsídios públicos. Isso vai na contramão dos países de referência, onde os sistemas de transporte são pensados como serviços públicos essenciais, geridos, regulados e subsidiados pelo Estado. A mobilidade urbana é peça-chave do funcionamento das cidades e não pode ser financiada somente por quem paga a tarifa.
Uma democracia plena vai além das eleições. O exercício da cidadania se faz no cotidiano: no acesso a espaços públicos, reuniões, encontros, audiências, manifestações. Uma vida democrática demanda deslocamento pelos territórios. O passe livre nas eleições de 2022 é, portanto, o início de uma política que precisa avançar no país, com o objetivo de garantir a cidadania universal.
André Veloso - Economista, pesquisador de mobilidade urbana e membro do Tarifa Zero BH Annie Oviedo - Analista de mobilidade urbana do Idec Daniel Caribé - Doutor em arquitetura e urbanismo e membro do ObMob Salvador Roberto Andrés - Professor da UFMG e diretor da Rede Nossas Cidades Cléo Manhas - Assessora política do Inesc
* Os autores fazem parte de organizações que integram a campanha Passe Livre pela Democracia
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