O transporte irregular acaba ocupando o espaço das linhas cortadas pelas concessionárias com o aval da prefeitura. Por ObMob Salvador
Nos últimos meses observamos o crescimento dos transportes irregulares (popularmente chamados de "clandestinos") em Salvador, ocupando o espaço deixado pelos cortes de linhas e diminuições da frota (quase mil veículos deixaram de circular entre 2020 e 2021) e da frequência dos ônibus regulares, tornando a mobilidade urbana ainda mais precária na nossa cidade.
Entretanto, antes de criminalizar as pessoas que empreendem e trabalham nos transportes irregulares, precisamos entender por que eles existem e qual o papel que eles cumprem em uma cidade com altos índices de desemprego e de informalidade, que vivencia um colapso dos transportes coletivos.
Além do mais, o transporte irregular é apenas um dos modais que vêm retirando usuárias e usuários do Sistema de Transporte Coletivo por Ônibus de Salvador – STCO. Muitas pessoas migraram para os automóveis particulares, em especial para as motocicletas, que além de serem um meio mais barato e eficiente do que os ônibus, podem ser utilizadas como atividade remunerada em um mercado de trabalho crescentemente informal e precarizado aberto para os entregadores do delivery.
Se soma a isso o fato de muitas pessoas, em especial as mulheres, passaram a usar com maior frequência os aplicativos (Uber, 99 etc.), tanto em efetiva substituição aos transportes coletivos, quanto em eventuais deslocamentos cotidianos. Essa migração para os transportes individuais motorizados, sejam eles próprios ou por demanda, vai na contramão do que precisamos, provocando externalidades negativas de todos os tipos, impactando nos sinistros de trânsito (alguns com mortes), na degradação do meio ambiente, passando pelo aumento do tráfego e pela pressão sobre o orçamento público para ampliação das vias, incidindo diretamente na utilização democrática da cidade.
De qualquer forma, essa não é a mais perversa das facetas do abandono dos transportes coletivos. A maior parte da população deixa de usar os ônibus coletivos para se deslocar exclusivamente a pé ou de bicicleta. Ou, pior, deixa de se deslocar, o que chamamos de “imobilidade urbana”. Aqui, pode parecer um argumento contraditório, já que defendemos a priorização dos deslocamentos ativos. Entretanto, defendemos também que eles sejam feitos desde que a cidade forneça uma boa infraestrutura, investindo na microacessibilidade, na malha cicloviária e no bem-estar das pessoas, considerando que as pessoas passaram a residir nas proximidades dos empregos e serviços (ou os empregos e serviços passaram a ser ofertados perto de onde as pessoas moram), não devido à pobreza e à exclusão.
O transporte irregular é, portanto, apenas mais um dos reflexos do abandono dos transportes coletivos. Primeiro pelos governos, que se recusam a subsidiá-los e a priorizá-los; depois pelos usuários e usuárias cansados de pagar caro por um serviço inseguro e de péssima qualidade. O transporte irregular acaba ocupando o espaço das linhas cortadas pelas concessionárias com o aval da prefeitura, mas também compete com os transportes coletivos porque pode custar menos para quem os utiliza ou oferecer um serviço, pelo menos aparentemente, mais eficiente e, contraditoriamente, mais confortável e seguro, apesar dos riscos reais provocados pela falta de regulação e de fiscalização.
Antes de combater e criminalizar o transporte irregular, piorando as condições da mobilidade urbana especialmente dos moradores e moradoras das periferias, propomos à prefeitura de Salvador que invista nos transportes coletivos, reative as linhas cortadas que faziam diferença no deslocamento diário, aumente a frota e a quantidade de viagens dos ônibus, crie faixas exclusivas, invista na segurança e baixe drasticamente o valor das tarifas, tornando os transportes coletivos atraentes e financeiramente acessíveis aos potenciais usuários e usuárias. Aí, sim, após tomadas essas medidas, se os transportes irregulares ainda existirem, poderemos pensar se devem ser banidos das vias públicas ou incorporados ao sistema regular de transportes coletivos.
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