Removendo catracas, escadas, elevadores e eventualmente a cobrança da tarifa das frotas, é possível atrair mais passageiros para o ônibus urbano. Por Lucas Vinícius
Publicado por Rede Mob 4.0
Cada vez mais pressionadas pelos desafios das mudanças climáticas, das metas globais para redução das emissões, da inclusão de raça e gênero, e pela construção de estruturas sustentáveis, as cidades brasileiras precisam apostar seriamente no transporte público, visto que ele é um dos poucos vetores de desenvolvimento que contribuem positivamente para sanar essas urgências.
O transporte público nunca esteve tão ruim. A redução da demanda causada pela crise sanitária (i.e.: A pandemia de COVID-19), pela chegada dos aplicativos de carros, tempos de espera intoleráveis e enfrentamento de longas viagens (boa parte desse tempo gasto preso no trânsito), catalisou a quebra do caixa de várias empresas de ônibus e eventualmente levou a uma redução drástica das frotas das cidades brasileiras, tanto quantitativa quanto qualitativamente.
Trazendo a experiência de Salvador, em janeiro de 2019, a tarifa era de R$ 3,70, e após um lapso de 4 anos, os soteropolitanos amargam o valor de R$ 4,90, com risco genuíno da tarifa subir para R$ 5,10. Dos três consórcios que operavam no sistema Integra Salvador, apenas dois deles permanecem pós-pandemia, com o Consórcio Salvador Norte (CSN) tendo seu contrato rescindido em 2021 após o não-cumprimento de requisições de renovação de frota, causando um caos na cidade com a perda de ⅓ da frota e cortes emergenciais de linhas, muitos deles se tornando permanentes. Para aumentar a injúria, a frota envelheceu consideravelmente, com as renovações trazendo número insuficiente de ônibus novos para a cidade, e também com a manutenção desleixada dos dois consórcio que ficaram, a Plataforma e a OT Trans. A situação ficou tão severa, que foi considerado necessário trazer ônibus velhos e usados de Brasília. A situação é similar em outras capitais nordestinas, como São Luís, Teresina, Aracaju, e também em outras metrópoles brasileiras, valendo notar Belo Horizonte, cuja tarifa hoje está nos R$ 6,00.
Se as prefeituras desejam atingir metas de desenvolvimento congruentes, é necessário reverter esse quadro, e iniciar uma forte política de atração do usuário ao transporte público. Isso significa investir o dinheiro em ônibus novos menos poluentes, faixas exclusivas, tecnologia de monitoramento da frota em tempo real, integração multimodal conveniente, garantia da assiduidade dos ônibus nos pontos e terminais, e também outras melhorias de qualidade de vida
Qualidade de vida no transporte público
O que faz uma pessoa abandonar o carro e optar pelo ônibus? Existem vários motivos; se um ônibus tem acesso a uma via expressa ou faixa exclusiva, pode ser a velocidade. Pode ser o custo também, visto que mesmo contabilizando todas as viagens do mês, na ponta do lápis, o ônibus vence todas as opções. Uma possibilidade pouco pensada entre os gestores, todavia, é o conforto. O ônibus pode e deve ser confortável, e para que uma viagem possa ser aproveitada ao máximo, o ônibus deve se tornar um ambiente de paz e tranquilidade, e não um ambiente de estresse. Isso significa, por exemplo, respeitar o limite de passageiros de acordo com as normas da ABNT. Na prática isso não ocorre, sendo muito comum viajar em ônibus superlotados.
Por causa da superlotação, os passageiros não conseguiam embarcar pela porta da frente, forçando o fluxo de embarque/desembarque a ocorrer apenas pela porta traseira. Existe um problema de ajustar o porte dos veículos com a demanda da linha nas cidades brasileiras. É necessário investir em veículos maiores ou aumentar a assiduidade dos ônibus.
O segundo desafio é embarcar e desembarcar dos veículos, esse é um desafio particular das cidades brasileiras, que quase sempre optam por ônibus de piso alto para suas frotas, essa escolha (nada técnica) impacta gravemente no tempo de espera nos pontos de ônibus (o dwell time), o grande vilão da velocidade das linhas, devido ao tempo que uma pessoa precisa gastar para escalar esse obstáculo. Além disso, é desconfortável ter que escalar os degraus. A distância praticada pela ABNT é de 1,05m entre o solo e o piso do ônibus, com degraus íngremes, até mesmo pessoas com grande aptidão física podem encontrar dificuldade, isso se intensifica na hora de uma pessoa com mobilidade reduzida embarcar.
É importante destacar que acessibilidade precisa ser interpretada de forma mais rígida, ônibus de piso alto vai contra a acessibilidade pois cria uma barreira física entre o passageiro e o piso do veículo, algo que é menos presente em carros e vans, onde o piso do veículo é bem mais baixo, facilitando o embarque.
Tomando o ponto de vista dos cadeirantes, a imagem acima ilustra uma situação corriqueira, mas desnecessária. Um tempo muito grande é gasto ativando e desativando o elevador hidráulico para permitir o embarque de cadeirantes. A máquina é barulhenta, chama atenção, além de ser um equipamento sofisticado com muitas partes móveis, logo, propenso a quebrar com facilidade. A baixa confiabilidade e alto custo de manutenção significa que muitos ônibus de piso alto tem elevador, mas circulam com ele sem estar funcionando. Os cadeirantes são roubados de sua autonomia, discrição e nem têm garantia de embarque e desembarque, mesmo que o elevador seja item obrigatório de fábrica em todos os ônibus urbanos do Brasil fabricados a partir de 2013 (para mais detalhes, ver a Resolução Nº 469 de 11/12/2013 — CONTRAN).
O ônibus de piso baixo geralmente apresenta um equipamento menos sofisticado — a rampa — logo, a manutenção desse equipamento é mais fácil e barata, além dele ser mais confiável, visto que para sua ativação, é necessário apenas que alguém puxe a alça e baixe a rampa. Em alguns ônibus a rampa pode ser ativada por equipamentos elétricos, o que permite que o motorista não saia da cabine. Combinado com boas calçadas (outra raridade que precisa ser priorizada junto com investimentos em mobilidade pública e coletiva), o tempo de embarque e desembarque pode ser agilizado para pessoas com dificuldades de locomoção e cadeirantes, e ainda abre a possibilidade de atrair novos tipos de passageiro, como mães e pais que levam crianças em carrinhos de bebê, e ciclistas integrando ônibus com a bicicleta.
Em Salvador, atualmente apenas 3,7% da frota municipal (63 ônibus) é piso baixo, todos esses ônibus apenas atendem as linhas do BRT (atualmente B1 e B2)
Existe também outro equipamento indesejável que atrapalha a vida dos passageiros dentro dos ônibus, que é a catraca. A presença da catraca se coloca como um obstáculo no fluxo de passageiros dentro do ônibus, atrapalha o embarque de passageiros que estão carregando peso, como alguma mochila ou sacos de compras, e afasta principalmente os usuários intermitentes e aqueles que podem escolher outros meios de transporte.
Na imagem acima, mesmo que o ônibus tenha piso baixo, a presença da catraca, dos corrimãos (ou balaústres), cria um desconforto agudo: A presença da catraca implica em julgamentos da forma do corpo (as catracas são muito estreitas, impondo um padrão de corpo nos usuários), da honestidade e integridade (sugerindo que o usuário é incapaz de pagar a tarifa sem ser impedido de seguir o fluxo de embarque), força, idade, e situação socioeconômica. Quem opta por viajar de transporte público eventualmente acaba sendo imbuído com uma sensação negativa devido a essas inconveniências que vão contra os valores e metas do transporte público coletivo. A presença das catracas, de certa forma, é hostil aos passageiros e aos stakeholders do transporte público, que inclui motoristas, cobradores, mecânicos, despachantes, e quem mais precisar passar dentro do veículo.
Além disso, as catracas não irão prevenir a evasão de tarifa ou controlar a entrada de pessoas “indesejadas” dentro dos veículos, visto que a evasão é feita de outras formas, contornando a catraca.
Sem catracas, o fluxo dentro dos veículos é facilitado, com os passageiros embarcando e desembarcando por qualquer porta. Isso é característico de sistemas BRT e Metrô onde o bloqueio com cobrança de tarifa fica fixo nos terminais, mas também de sistemas VLT, como o VLT Carioca ou o caso do Metrô de Berlim, onde a cobrança é feita com leitoras de cartão dentro do veículo distribuídas pelo veículo próximas às portas de embarque e desembarque. Eventualmente algum fiscal irá passar validando o cartão/tíquete dos usuários e multando aqueles que não validaram o cartão e pagaram a tarifa. Existe também a possibilidade de usar uma tag similar a dos pedágios para cobrar os passageiros usando RFID nas portas.
Idealmente, a metodologia aplicada aqui no Brasil deve seguir as diretrizes propostas pela Coalizão Triplo Zero, SUM (Sistema Único de Mobilidade, ver PEC 25/2023) e movimentos Tarifa Zero, onde a tarifa seria 100% subsidiada por recursos dos governos — União, Estado e Municípios das Regiões Metropolitanas envolvidas — e tributos pagos por stakeholders como motoristas de veículos privados, grandes empresas e grandes fortunas — que são os maiores poluidores e consumidores de espaço e recursos das rodovias urbanas no país. Além de eliminar a catraca, eliminaria a necessidade do passageiro portar o bilhete eletrônico ou calcular o preço da integração como no caso de São Paulo ou Rio de Janeiro, onde a baldeação entre sistemas incorre em um ônus a depender do fluxo feito.
Em outros países e cidades no mundo, não somente no Brasil, existem experimentos com a tarifa zero, como é o caso de Luxemburgo e Estônia, e também existem lugares onde existe 100% de subsídio para jovens e ou universitários (mas ainda existem bloqueios e ou validação da passagem, mesmo que sem cobrança).
Além disso, poucos países usam bloqueios como catracas no interior dos veículos. Esses equipamentos são mais comuns no espaço pós-soviético e latino-americano, mas fora dele, especialmente na Ásia e Europa, mas contando também na África e América do Norte, a cobrança de tarifa é feita na base da confiança, ou então um cobrador coleta o pagamento das passagens enquanto caminha pelo corredor. A presença de catracas, pode-se dizer, é uma característica de administrações (tanto no ponto de vista da administração das empresas de ônibus, quanto no ponto de vista da administração pública, que envolve municípios, estados e a União) que visam impor comportamentos, padrão físico e segregar as pessoas por conformidade; enquanto isso, outras culturas que exibem valores mais inclusivos, não mostram a presença da catraca. Curiosamente, a falta da catraca na Índia ou China não incorre em níveis de evasão diferentes dos países e sistemas onde existe catraca, indicando pouca utilidade do equipamento para o fim que lhe é conferido.
O próprio conceito de cobrança de tarifa pode ser questionado, visto que a cobrança sujeita àqueles que não podem pagar (quase sempre dos setores marginalizados da sociedade) à morte, injúria, prisão e outros tantos danos.
Removendo os itens citados acima (catracas, escadas, elevadores e eventualmente a cobrança da tarifa) das frotas, é possível atrair mais passageiros para o ônibus urbano, ajudando a reduzir o número de carros nas ruas, melhorando índices de inclusão social, poluição e integrando melhor a malha urbana nas grandes cidades do Brasil.
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Lucas Vinicius é discente do curso de Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas no IFBA e membro do coletivo Observatório da Mobilidade de Salvador
Este texto é vinculado ao projeto Mob 4.0, financiado pela FAPERJ e com apoio da COPPE e UFRJ.
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