Em meio a crise no transporte público, nove capitais já estudam não cobrar pelo acesso aos ônibus. Por Daniel Genonadio
Publicado no A Tarde
A população de Salvador acompanha apreensiva um longo processo de revisão tarifária que pode resultar em um aumento expressivo no valor da tarifa dos ônibus que compõem o sistema de transporte público. O valor, hoje em R$ 4,90, já é considerado caro para os usuários, algo que foi admitido até mesmo pela gestão municipal.
Em meio a esse iminente colapso, uma alternativa que surge, ainda no campo das ideias, é a chamada Tarifa Zero, já discutida oficialmente em nove capitais do Brasil: São Paulo e Belo Horizonte, onde a pauta já tem ganhado espaço nas Câmaras Legislativas e no Executivo, além de Campo Grande, Teresina, Fortaleza, Curitiba, Florianópolis, Palmas e Cuiabá.
Em Salvador, o contrato da concessão do Sistema de Transporte Coletivo de Salvador (STCO) e da criação da Integra - que teve início em janeiro de 2015 - prevê o reajuste da tarifa anualmente, por meio de variação indicada pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Antes do primeiro reajuste, em 2014, a tarifa era de R$ 2,80. A última mudança aumentou o valor pago pelos usuários de R$ 4,40 para R$ 4,90.
Em conversa com o Portal A TARDE, o secretário de Mobilidade de Salvador, Fabrizzio Müller, detalhou o que seria necessário para a implantação da Tarifa Zero na capital baiana. O titular da pasta responsável pelo transporte público ainda apontou que o debate, apesar de necessário, ainda é "embrionário" e "utópico".
"Eu diria que essa discussão é hoje do Brasil todo. Pequenas e médias cidades já implantaram. São cidades realmente pequenas e que não se comparam com uma capital como Salvador. Existem estudos mais avançados em São Paulo, em Belo Horizonte, justamente discutindo a questão da Tarifa Zero. No primeiro momento, parece algo utópico. O custo do transporte é muito alto e os orçamentos municipais hoje não comportariam ter esse custo. É uma discussão ainda muito embrionária", disse.
Fabrizzio afirmou que o município sozinho não tem capacidade de suportar o custo do transporte público, que em Salvador tem o custo anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, no modelo atual onde a tarifa remunera 100% do sistema. Apesar disso, afirmou que uma mudança, com um subsídio municipal parcial, não é descartada.
"Mesmo uma cidade como São Paulo, que tem orçamento de quase R$ 100 bilhões, não suporta o tamanho do valor do seu subsídio. Antes da pandemia, poucas cidades subsidiavam o seu transporte. Hoje, muitas cidades estão subsidiando. Salvador, até então, não entrou com subsídio para o transporte público. É um cenário que não é descartado. A gente está agora no processo de revisão tarifária para avaliar o valor dessa tarifa técnica e se há necessidade e como ter algum tipo de subsídio", explicou.
Na avaliação do secretário, uma discussão sobre Tarifa Zero só deve avançar se colocada a nível nacional, com a União e o Estado da Bahia garantindo recursos.
"Evidentemente que se vier recursos extraorçamentários, recursos federais e estaduais, em uma união dos entes da federação para custear o transporte público...esse talvez seja o grande entrave", falou.
Eu entendo, de maneira pessoal, que por dever de justiça, a tarifa do transporte público deve ser paga por todos, não só pelo usuário do transporte público -- Fabrizzio Müller, Secretário de Mobilidade de Salvador
"Eu entendo, de maneira pessoal, que por dever de justiça, a tarifa do transporte público deve ser paga por todos, não só do usuário pelo transporte público. Aqueles que usam e os que não usam o serviço precisam que ele funcione de maneira adequada. A mobilidade de uma cidade não se resolve com soluções que não sejam coletivas. É uma discussão que precisa evoluir e que a gente encontre uma solução que possa atender essa expectativa de tarifa zero e que faça sentido para o usuário e para os municípios", acrescentou o secretário.
Presidente da Comissão de Transportes da Câmara Municipal de Salvador, o vereador Tiago Ferreira contou que existe a expectativa que o debate sobre a Tarifa Zero seja iniciado na capital baiana, mas considerou difícil qualquer avanço da pauta na Casa, que conta com a maioria dos vereadores na base do prefeito Bruno Reis (União).
"Eu primeiro quero fazer uma audiência pública convidando especialistas em mobilidade urbana de Salvador para que a gente comece a buscar saídas de onde viriam recursos para financiar isso. Acho hoje muito difícil uma aprovação na Câmara Municipal, a maioria da Casa é da base, e embora a ideia de um projeto seja bom para toda a capital, a base governista segue o seu líder político, que é o prefeito da cidade. Nós vamos fazer essa debate, mas só acho que vai ganhar corpo em Salvador quando houver uma política nacional de Tarifa Zero", disse.
O vereador ainda revelou que já pleiteou ao prefeito Bruno Reis um subsídio municipal para alunos da rede pública de ensino, no entanto, não houve avanço. "A alegação do prefeito é que não tem recurso, não tem como fazer isso. É um debate que precisa ganhar corpo, hegemonia na sociedade, mas em Salvador, o prefeito alega não ter recursos".
"A prefeitura sempre vai alegar que não tem dinheiro, mas a gente percebe que se houver esforço dá para iniciar a Tarifa Zero, pelo menos para estudantes de escola pública, talvez para universitários, para estimular o ensino" --Tiago Ferreira, presidente da Comissão de Transportes da Câmara Municipal de Salvador
Questionado quanto a possibilidade de dar um pontapé inicial na política de Tarifa Zero com determinados grupos sociais, como estudantes de escola pública, Fabrizzio Müller ressaltou mais uma vez que a medida esbarra na falta de dinheiro.
"O problema posto é o mesmo. É preciso ter recursos no orçamento ou extraorçamentários que possam suportar esse valor a ser colocado. É algo que precisa ser discutido e acho que isso não é apenas Salvador, todos os municípios tem restrições orçamentárias... o que se pensa é, sendo necessário, avaliar o pagamento de subsídio, para se resultar em uma tarifa menor. É algo que precisa ser debatido, inclusive na Câmara dos Vereadores, e precisa considerar do ponto de vista orçamentário", acrescentou o secretário.
Mobilidade, direito cada vez mais caro
O transporte passou a ser um direito social garantido pela Constituição Federal após aprovação da PEC 74/2013. No entanto, os seguintes aumentos no valor da tarifa do transporte público podem causar a exclusão das pessoas menos favorecidas economicamente do direito ao modal.
O economista do Ministério da Gestão e ex-secretário de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia, Elias Sampaio, reforçou o argumento.
"Há alguns anos não havia ônibus dos bairros populares para a Orla de Salvador, para Barra, Amaralina, Pituba... a mobilidade pode não ocorrer simplesmente por não ter transporte coletivo disponível e pode não acontecer pelo transporte ser muito caro. Se a Constituição nos garante a mobilidade urbana e a mobilidade humana (o trânsito de pessoas para lazer, vida familiar), nós temos que buscar uma modelagem em que o acesso aos meios de transporte sejam disponíveis. Não adianta ter ônibus da Fazenda Grande do Retiro para Orla de Salvador, por exemplo, se custa uma fortuna", opinou.
Para Sampaio, a Tarifa Zero pode ser uma solução para os grupos menos favorecidos economicamente.
"Trabalhadores mais pobres se deslocam a pé ou de forma a fugir do transporte público por causa do peso que esse gasto diário tem sobre a renda dele. É uma solução que vai atender principalmente aos trabalhadores mais pobres da nossa sociedade", disse.
O secretário de Mobilidade de Salvador concordou que o valor da tarifa gera exclusão e perda de passageiros para outros modais, normalmente os informais. Ele ressaltou o aumento dos insumos para o transporte público (combustível, veículos novos, custos de peças, mão-de-obra, entre outros) como motivo para os reajustes.
Populares apoiam a ideia
A proposta de Tarifa Zero foi defendida por populares entrevistados pelo Grupo A TARDE na Estação da Lapa, uma das mais movimentadas de Salvador. Entre várias críticas ao transporte público, os usuários do sistema apontaram que a tarifa atual é alta.
"O valor é muito alto diante do serviço. A espera de um ônibus é grande, os profissionais são despreparados, coletivo sujo. Pensa aí quem depende de um subemprego para manter um transporte de quase R$ 5 e precisa pegar dois, três, quatro transportes por dia? Esse valor da tarifa sendo zero seria usado em outra coisa, em alimentação melhor, vestimenta, até se dar o luxo de um passeio, ir à praia. Pensa em quem mora em bairros afastados, para chegar na orla tem que ter pelo menos R$ 20. Seria algo valioso", disse Natércia Santos, usuária do transporte público.
"Um valor exuberante. Ônibus velhos, sujos e no horário de pico não tem carro. Deveria ter uma qualidade melhor para os usuários. Tiraram os ônibus dos bairros e temos que rodar o mundo todo para chegar. [Tarifa Zero] melhoraria bastante. A renda das pessoas está pouca. Não é todo mundo que tem condição de pagar R$ 5 para três, quatro ônibus. Muito caro pelo serviço péssimo", opinou a aposentada Miriam Barbosa.
Tarifa Zero na prática
Dados da Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU) mostram que a demanda de passageiros pelo transporte público de ônibus no país caiu quase 20% após a pandemia de covid-19. O número de passageiros em fevereiro de 2023 caiu para 82,8% do registrado no mesmo mês de 2020, o que mostra que a utilização do meio de transporte não se recuperou mesmo após a crise sanitária. Em Salvador, o número de passageiros chegou a cair pela metade e agora ainda está aproximadamente 25% abaixo.
Para Elias Sampaio, a discussão é saber qual o nível de subsídio necessário para que se tenha o processo de tarifação zero. No entanto, ele ressaltou que a infraestrutura urbana de transporte coletivo é muito complexa e que é mais "racional" estruturar os processos gradualmente do que aderir a gratuidade a todos de imediato, em meio a relação custo-benefício e da qualidade e segurança do transporte.
Alguns outros problemas também foram postos, como a discussão acerca da função dos cobradores, que foram defendidos por Tiago Ferreira, que também é diretor do Sindicato dos Rodoviários da Bahia.
"Tenho defendido constantemente que a função do cobrador não é apenas cobrar o valor da tarifa. Ele tem o papel de auxiliar os passageiros, inclusive pessoas idosas, com mobilidade reduzida, ajudar os cadeirantes a entrar e descer do ônibus operando o elevador. A finalidade pode até mudar um pouco, mas ele fica nesse debate na parte de ajudar o motorista, ajudar os passageiros. Acho fundamental ter essa segunda pessoa, mas obviamente que vai ter uma queda de braço com o empresariado, que busca reduzir seus gastos às custas dos trabalhadores", disse.
Outra questão é o possível aumento de demanda de passageiros como resultado da gratuidade, o que precisaria aumentar o valor dos investimentos para além do atual. "Não é simplesmente custear o que está hoje posto, tem que estar preparado para um aumento de oferta”, falou Müller.
Mas o consenso é que a implantação da Tarifa Zero depende de apoio federal, com recursos para os municípios. Tiago Ferreira sugeriu o transporte público como uma política nacional, com a possivel construção de um 'SUS do transporte', com recursos federais e estaduais destinados para subsidiar a tarifa do ônibus.
Outro consenso é que a Tarifa Zero será importante nas eleições municipais do próximo ano. Na última semana, o PT incorporou o tema como bandeira nacional do partido para as suas propostas em 2024. "Eu vejo que a discussão da Tarifa Zero será um debate crucial na eleição municipal do ano que vem e quem não estiver antenado com essa pauta vai terminar perdendo muito. O debate sobre a tarifa será preponderante", disse o vereador.
Já Fabrizzio Müller garantiu que se o tema vier à tona na Câmara Municipal de Salvador, a prefeitura não terá "nenhuma dificuldade" em discutir a questão.
Confira reportagem audiovisual especial do A TARDE Play sobre a Tarifa Zero:
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